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quarta-feira, 29 de maio de 2013

O adeus e os versos de um bardo português


O que é melhor, o original, ou um remake?


Pilhas de livros na mesa. Um antigo player de CD e um poema inacabado, palavras perdidas em rimas toscas: “eu te amei até a última folha de outono, depois tudo virou inverno e sono...”. A taça de vinho, manchada, a taboa de queijos ressequidos, insistiam em pedir limpeza. Ela observava tudo com uma atenção que nunca precisara, ou pelo menos que achasse necessária. Apertou a tecla de áudio e, das pequenas caixas acústicas saiu a canção com o sotaque dos Açores. “É destino de quem ama, ser ator num melodrama, num romance de cordel. Eu passo horas a fio, a ensaiar um assobio e tu nunca me sorris,” canta Zeca Medeiros, transpirando uma melancolia feliz (é possível tal sentir?), que, pela primeira vez a comovia.

Tanto tempo juntos e não se preocupara em investigar o universo dele. Tão culto em música e obras de ficção e, talvez por isso, homem de perfil apaixonado, embora o jeito bem-humorado de conduzir a relação à dois. Ela sentia uma ponta de desconforto, ao sentir-se fora daquele universo de canções estranhas às rádios e de filmes produzidos e interpretados por atores desconhecidos. Decididamente não a seduziam. O que havia de errado com as celebridades de verdade? Mas ele sempre tão reticente. Por exemplo,  guardava reservas imensas em relação a refilmagens, ou regravações de antigos sucessos. Ela adorava roteiros antigos, transformados em novos filmes.

Reclamava sentir-se igual a um objeto de antiquário. Ele sorria e, a imitar um afetado colecionar de obras de arte; exclamava: "És minha escultura única e exclusiva". O player inicia uma nova canção. Esta sempre a fizera rir: “O amor é um labirinto cativeiro de um desejo, hei-de cantar o que sinto de cada vez que te vejo, desaforo, atropelo, que o amor é uma ilusão, será sonho ou pesadelo traiçoeiro alçapão. Quando eu te vejo sei que sou palhaço pobre mas nunca palhaço rico. Quando eu te vejo sei que sou um proletário que de tudo eu abdico,” canta Zeca Medeiros, a puxar o divertido refrão: “É que eu gosto tanto de ti que até me prejudico”. Olhou em volta e desta vez, chorou.

Abraçou-se ao chapéu velho que só saía da cabeça de poucos cabelos para a velha poltrona de veludo. O aspirou lentamente, de olhos fechados, como a tentar materializar aqueles odores familiares no homem que não estava ali. Tinha poucos minutos, ainda. Ele lhe dera a manhã para recolher seus poucos pertences. Roupas, uma toalha e alguns livros. Uma cena que não pensara viver tão cedo. Cometera o desatino de confessar, que havia saído com um colega de trabalho. Ele tão jovial, tão oposto ao mundo mais reservado do namorado, conseguira seduzi-la justamente com os cheiros do novo: Iphone, comida japonesa e uma sessão de cinema 3D, encerrada em uma noite tridimensional, em um apartamento, igualmente, moderno. Mas passado o arrepio da sensualidade, arrependera-se.

Ele ouviu surpreso, a inesperada confissão. Até tentou um diálogo, mas a voz, embargada, apenas lhe autorizou a recitar, mais um verso do poeta e cantor açoriano, “o amor talvez seja escada rolante a subir ao paraíso, ou mergulho delirante nas marés do prejuízo”. Em seguida disse que dormiria em um hotel para ela juntar as coisas. Não, não queria discutir arrependimentos, ou fraquezas “que estas eu as entendo, quero apenas o direito a voltar a ser só”.

Ela permaneceu estática, como a rosa só de espinhos, que canta a canção, sem coragem de interrompê-lo. Mas não fez a mudança. Nos dias seguintes tentou argumentar, exigiu o perdão. Agiria impulsivamente, percebera que o amava igual ao personagem daquelas canções lusitanas. Mas ele repetia à exaustão que reconhecia ser um sujeito assim, monótono e antiquado. Talvez por isso, a preferisse como aquele poema sem fim. Ele que detestava refilmagens, não poderia concordar com um recomeço - mesmo sem a troca de personagens - pois o roteiro, embora corrigido, sempre estaria mais para drama do que para comédia romântica.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Cadê o leiteiro?


Se foram os leiteiros, ficou a adultureção
“Um leiteiro ganancioso enganava a freguesia
Misturava água no leite e para o povo vendia
Enriquecendo depressa dizia fazendo graça
Não há nada nesse mundo que o homem queira e não faça
E quando eu puxar do balde
Água do poço à vontade
Não falta leite na praça”

Sou do tempo em que o leite era vendido em garrafas de vidro, lacradas com fina tampa de alumínio. O risco de adulterações era imenso, mas na falta de alternativa mais segura, a saída era confiar no leiteiro (mas não deixá-lo puxar assunto com as mulheres da casa, afirmavam os inseguros). A indústria evoluiu, vieram as embalagens em saquinhos, depois os sistemas mais seguros à vácuo. Os leiteiros, acabaram perdidos no passado. Lembrados talvez em canções sertanejas de raiz, como Água do Leite (O leiteiro e o Macaco), da dupla Zé Fortuna e Pitangueira, cujo trecho citei acima. Hoje, pelo menos em tese, é tudo perfeitamente higienizado.

O Ministério Público Estadual acredita que talvez não seja bem assim. As empresas de transporte estavam comprando uréia em grande quantidade. Desconfiado, o MP partiu para a investigação e na quarta-feira passada, expediu cerca de 10 mandados de prisão e oito de busca e apreensão nas cidades de Ibirubá, Guaporé e Horizontina, contra cinco transportadoras de leite por suposta adulteração a base de uma “sopa”, conforme era chamada a mistura de água de poço não tratada e uréia, do leite que os produtores lhes confiavam.

Tudo isso para lucrar 10% além dos 7% já pagos sobre o leite cru. Que as autoridades agora castiguem com rigor esses empresários sem ética. Assim, só podemos esperar que os vigaristas que transformavam água em dinheiro, vejam o lucro criminoso voltar a forma líquida de sopa. E que esta lhes sirva de alimento no xilindró. Mais ou menos como cantava a dupla caipira que sabiamente constatava: “O homem é bicho tratante E vê no seu semelhante, o seu maior inimigo”.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Fábricas de sonhos bons

O que alimenta o sonho? E o que faz real?
Certa vez sonhei que eu e meus filhos brincávamos em uma cesta enorme, cheia de números de plástico. Ganhava quem mais identificasse os numerais. No trabalho, relatei a meus colegas e um deles, apaixonado por loterias me perguntou se eu lembrava alguns destes números. É claro que esquecera tudo. Mas inventei um milhar qualquer para alegrar esse colega. Lá foi ele fazer "uma fé" e insistiu para eu jogasse, o que não fiz. Havia escolhido números soltos, sem relação com o sonho. No dia seguinte, fiquei sabendo que os meus números lhe haviam garantido uma boa grana. Eu não entendi a mensagem do meu próprio sonho?


Então, aprendi que não bastam os sonhos, é saber interpretá-los. Óbvio não é mesmo? Existe dezenas de livros sobre o tema. E é claro, não comprei nenhum e segui assim, desperdiçando sonhos. Mas uma vizinha de minha mãe, me juro que, ela procurava ser a diretora de seus próprios sonhos. Se precisa de alguma luz na área de finanças doméstica, lê revistas, livros, fala com amigos sobre o tema.

Quando sonha com o que vem assimilando acordada, parte para a execução dos projetos. Ela garante que funciona. Os sonhos lhe dão o rumo que, mesmo a mesma fina orientação técnica, não assegura. Diz que na maioria das vezes, sonha com algum novo projeto – ela é arquiteta – ou cliente, propondo algo rentável e nada delirante. Tem sonhos práticos, ora vejam. Ela diz ser uma espécie de lei da atração de travesseiro.

Mas adverte que a coisa só não funcionava para conseguir namorado. Muitas vezes idealizava o cara, sonhava com ele em cenas românticas, às vezes, até mesmo bem quentes, mas tudo o que lhe aparecia nunca era bem aquilo que o mundo dos sonhos lhe apresentara. Lia publicações esportivas, tipo futebol e automobilismo. Fora assistir jogos em bares, onde a testosterona impregna o ambiente, mas inevitavelmente, errava o foco.

Ou o cara gostava tanto de futebol que esquecia que namorar é melhor longe dos estádios, ou era tão insosso que ele preferiria dormir. Sem sonhos! Não existe o homem dos sonhos, concluiu.

Por mais que procurasse aquele cara que, no mundo onírico lhe apresentava, poeta ou amante intenso, Na vida real, só apareciam sujeitos inseguros, às vezes carentes e sempre com uma história triste de uma ex.

A partir daí,para encerrar essa crônica, concluo que é bom ficar atento aos sonhos. Eles articulam os sentidos e estimulam a criatividade. É como o músico que sonha com uma canção e precisa gravá-la imediatamente para que não ser esquecida. Yesterday, uma das canções mais famosas dos Beatles, foi sonhada por Paul MacCartney. Imagina se ele deixasse para depois?
A diferença é que uma canção você estrutura como bem entender, sonhada ou não. Um número de loteria é pura intuição. Mas dividir o sonho com outro, exige sintonia fina. Essa é construída de pés no chão, onde os sonhos que alimentaram fantasias, precisam alimentar-se de realidade.